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complexo materno

Complexo Materno Originalmente Negativo

Introdução

Irei discorrer sobre o complexo materno, originalmente negativo nas mulheres, embasado pela abordagem junguiana.

A escolha deste tema se deu devido o trabalho que desenvolvi com adolescentes gestantes e mães em regime de abrigo.

Ouvi muitas histórias relacionadas à experiência de cada adolescente que chegava ao abrigo.

Na maioria, era expresso claramente o conflito na relação familiar, principalmente com a genitora.

Ao ler o que Verena dizia sobre o complexo materno originalmente negativo, consegui entender melhor a história de vida das adolescentes, bem como pensar em diferentes estratégias para desenvolver o trabalho de acompanhamento e intervenção familiar.

Em alguns casos, as mães das adolescentes se dispunham a rever a forma que agiam com as filhas e demonstravam interesse em aprender outras formas de se relacionar, contudo o caso que escolhi não obtive sucesso a partir deste prisma.

Aspectos Teóricos

Complexo é um conjunto de imagens, ideias, fatos inconscientes, carregados por forte carga afetiva, que consiste num núcleo (arquétipo) e em elementos psíquicos que se concentram em torno dele.

Stein, em O Mapa da Alma utiliza-se da seguinte metáfora para conceituar o que Jung denominou de complexos, de uma forma clara e de fácil entendimento:

“Imaginemos por um momento que a psique é um objeto tridimensional como o sistema solar.

A consciência do ego é a Terra, terra firma; (…).

O espaço ao redor da Terra está cheio de satélites e meteoritos (…).

Esse espaço é o que Jung chamou o inconsciente, e os objetos com que primeiro nos deparamos quando nos aventuramos nesse espaço são o que ele chamou de complexos.” [1]

Dentre inúmeros complexos, há o complexo materno originalmente negativo, o qual recorri para compreender o caso clínico descrito no próximo tópico.

Calluf refere-se aos complexos materno e paterno, de forma mais ampla – como complexo parental, considerando-o o primeiro e mais importante.

“Resulta do primeiro choque entre a realidade e a constituição inata do indivíduo ainda inadaptado, já que são os pais a primeira realidade com que se conflitua. (…)

Os pais, com sua presença, atitudes, atos, provocam na criança fortes reações afetivas, as quais, mesmo que não traumatizem, necessariamente se imprimirão na psique infantil, despertando nela os arquétipos parentais”.[2]

“Pessoas com um complexo materno originalmente negativo tem em comum o fato de acharem que são em si-mesmo ruim em um mundo ruim, que não tem nenhum direito inquestionável à existência e que são, por fim, elas mesmas, culpadas disso”. [3]

Kast se detém principalmente nos sentimentos gerados por este complexo, considerando o que acarretam para a vida da pessoa na sua relação com o mundo.

“(…) é típico o sentimento vital de que o indivíduo deve lutar por tudo que seja absolutamente imprescindível;

(…) encontra-se o sentimento vital da solidão, do estar à mercê de alguém, o sentimento de não receber o suficiente para a vida, mas em demasia para morrer”.[4]

Este complexo também provoca desconfiança primordial, gerando um medo existencial e o sentimento de não ter direito à existência. Contudo, podem provar que têm esse direito ao cuidar dos outros como mães, dando-lhes o que elas mesmas não receberam.

Gera ainda o sentimento de isolamento conturbado, de solidão angustiante e intensa expectativa de serem novamente rejeitadas, surgindo dificuldades de relacionamento.

“Ao invés do sentimento da inquestionável participação no mundo, em tudo que o mundo oferece, (…) domina o sentimento de estar expulso, que provoca uma luta inaudita para, apesar de tudo, fazer parte disso.

Geralmente o rivalizar é fortemente desenvolvido e o amar é pouco desenvolvido, mesmo que estas pessoas freqüentemente exijam de si, no âmbito das relações”.[5]

As pessoas marcadas por este complexo, inconscientemente esperam pela “benção da mãe”, estando próximas da mesma, deixando-se tiranizar, entrando num jogo recíproco de poder, “sempre na esperança de um dia conseguirem a vitória sobre a mãe (…)”.[6]

Freqüentemente apresentam problemas relacionados a auto-estima rebaixada, expressas no corpo através de distúrbios psicossomáticos.

Vale ressaltar que para a mulher é mais árduo que para o homem encontrar sua identidade.

“Caso se torne mãe, querem que ela tenha encontrado repentinamente uma identidade segura como mãe e, de um momento para outro, ocupe positivamente esse campo feminino” ou “quando conseguem escapar com êxito para o mundo dos pais, são particularmente prejudicadas porque desenvolvem uma identidade derivada deles”.[7]

Análise da Situação

Gabi[8] foi encaminhada para uma casa abrigo especializada no atendimento para adolescentes gestantes.

Na época Gabi estava com 17 anos, grávida de 7 meses e meio.

Seu encaminhamento foi realizado pelo hospital Campo Limpo – SP, no qual permaneceu aproximadamente 15 dias internada, pois tentou suicidar-se ingerindo chumbinho (veneno de rato).

Gabi conta sobre sua dinâmica familiar e o motivo que a levou a tentar se suicidar.

Possui 4 irmãos, sendo ela a segunda filha.

Relata que seu genitor faleceu quando estava com aproximadamente 6 anos de idade e logo após sua genitora iniciou novo relacionamento, com quem convive até hoje.

A genitora sempre a tratou com desdém, criticando-a negativamente com frases do tipo “você não serve pra nada, além de me encher o saco”… “vê se faz algo de útil, como alguém pode ser tão inútil assim” (Sic).

É notório que a relação vivida com a genitora é marcada pelo complexo materno originalmente negativo, sendo que Gabi sofreu diversas consequências por isto.

Gabi se esforçava para ir bem na escola e ainda realizava os trabalhos domésticos para a genitora, bem como, cuidava dos irmãos menores, porém sem nenhum reconhecimento positivo.

Inicialmente Gabi tinha a esperança de que um dia a genitora fosse lhe dar o valor que acreditava merecer, contudo isto nunca aconteceu.

Com o passar do tempo, Gabi começou a sentir-se muito magoada e enraivecida devido à forma que a genitora lhe tratava.

Acreditava ainda que era uma pessoa boa, que se esforçava para fazer tudo certo, mas simultaneamente achava que fazia tudo errado e que por melhor que fizesse, não era suficiente e a genitora colocaria defeitos.

O pouco que ainda tinha de auto-estima e amor próprio se extinguiu, permanecendo em seu lugar os sentimentos de rejeição, ansiedade e expectativas relacionadas às possibilidades futuras de ser novamente rejeitada, bem como, o sentimento de solidão era intenso.

Gabi então decidiu que passaria a maior parte do tempo fora de casa, para evitar o contato com a genitora.

Também parou de estudar, pois começou a ir mal na escola, cultivando o sentimento de que não conseguia fazer nada direito mesmo, então para que continuar?

A partir dos 12 anos de idade, Gabi foi colocada para fora de casa pela genitora inúmeras vezes.

Isto sempre acontecia após discussões e principalmente quando ela negava-se a dizer para a genitora onde tinha ido e aparentemente fazia-se indiferente aos dizeres da mesma.

Nestas situações parece que Gabi tentava preservar o pouco de sentimentos altruístas que ainda possuía, mesmo que de modo inconsciente.

Contudo, a genitora quando precisava de Gabi para algo, solicitava a outra filha que fosse busca-la e a trouxesse de volta; isto parecia ser um momento de oásis, quando conseguiam dialogar.

Gabi aceitava retornar sempre na esperança de que “dessa vez vai ser diferente” (Sic), porém passava dois ou três dias e tudo voltava a ser como antes.

Sua irmã mais velha saiu de casa na mesma época, passando a residir com o namorado.

Algum tempo depois a terceira filha foi morar na casa de uma amiga, permanecendo com a genitora, Gabi e os dois irmãos pequenos.

Porém Gabi cansou-se da situação e decidiu que iria buscar um trabalho, com o intuito de adquirir sua independência financeira e sair definitivamente de casa.

Para agravar a situação, sua irmã mais velha que já havia saído de casa, quando ia visitar a genitora inventava histórias sobre Gabi, colocando a genitora contra ela, aumentando consideravelmente os conflitos.

Esta irmã parece ter se aliado à genitora contra Gabi para não continuar sendo “vítima” deste complexo, sendo o modo que encontrou para se proteger.

Aos 16 anos de idade Gabi, começou a namorar com Jean[9].

Houve uma briga com a genitora que novamente a colocou para fora de casa.

Jean ao tomar conhecimento da situação familiar de Gabi, levou-a para residir consigo e sua família.

Contudo, a situação em sua casa também era complicada, uma vez que seu genitor era alcoolista e na casa, composta por dois cômodos, viviam 11 pessoas.

Inicialmente Gabi não se importou, pois acreditava que qualquer lugar era melhor que a casa de sua genitora.

Porém com o passar do tempo, começou a se sentir desprezada e desvalorizada principalmente por Jean, mas não tinha recursos internos e também externos para mudar esta situação.

Após iniciar o convívio com Jean, Gabi visitou a genitora algumas vezes, sendo que em alguns encontros conseguiram dialogar sem que a mesma lhe agredisse, mas houve outros em que a situação de agressão e rejeição aconteceu.

Gabi engravidou logo após ter passado a residir com Jean e demonstrava estar feliz com a possibilidade de ter um filho, sendo que poderia dispensar-lhes cuidados assim como fazia com os irmãos e principalmente oferecer-lhe o que sua genitora nunca lhe deu: amor e carinho.

Pelo modo que Gabi contava esta passagem, parecia ter constituído sua identidade enquanto mulher, apesar da pouca idade e demonstrava ter clareza do que almejava para sua vida.

No final do sexto mês de gestação, Gabi ao visitar a genitora encontrou-a completamente alcoolizada, bem como, esta lhe ofendeu e amaldiçoou seu filho.

Tal fato a deixou muito triste, levando-a a pensar que não era digna de continuar a viver e muito menos de gerar vida e de não receber o suficiente para viver, mas em demasia para morrer.

Na mesma semana, Gabi discutiu com Jean, que lhe disse que se não estivesse contente podia pegar suas coisas e ir embora, pois não faria a menor diferença.

Novamente Gabi foi desprezada e rejeitada por uma pessoa significativa; o sentimento de que não era digna de viver e gerar vida intensificou-se, decidindo que não havia razões positivas para continuar vivendo.

Gabi sabia que na casa de Jean tinha chumbinho comprado por sua sogra para matar ratos, então lembrou-se de quando era muito pequena e sua genitora contou-lhe que um tio havia falecido, pois tinha tomado chumbinho.

Gabi planejou sua morte, acreditando que nada poderia dar errado: esperou que todos saíssem e tomou chumbinho.

Quando sua cunhada chegou, a encontrou caída no chão e percebeu que Gabi não estava bem, chamando Jean, que levou-a para o hospital a tempo de realizar os procedimentos médicos pertinentes para salva-la.

Novamente Gabi pensou que sua genitora tinha razão, pois não conseguia fazer nada certo, considerando que a ingestão do chumbinho não a matou.

Quando questionada do porque tentou se suicidar, Gabi alegou “eu não sirvo pra nada mesmo, estava atrapalhando a vida do meu marido e principalmente da minha mãe, se eu morresse deixaria de ser um peso na vida deles … mas como não morri, decidi que tenho motivo maior que tudo nessa vida pra continuar aqui, que é dar a luz e cuidar muito bem do meu filho e aprender a cuidar de mim” (Sic).

Esta situação mobilizou conteúdos inconscientes em Gabi relacionado ao desejo de viver e de sentir útil para o filho que estava para nascer e a partir daí poderia construir uma nova história em sua vida, bem como, iniciar a busca por sua própria identidade.

No momento da alta hospitalar, Jean não pôde assinar, pois não eram casados e a genitora de Gabi se recusou a ir busca-la, motivo pelo qual foi encaminhada para o abrigo.

Ao chegar no abrigo, Gabi chorava copiosamente, demonstrando-se arrependida por seu ato e principalmente preocupada com o filho, tinha medo de que o mesmo tivesse sido afetado pelo veneno.

Gabi deu a luz a um menino muito saudável.

Realiza todos os cuidados com o filho, com muito carinho, atenção e dedicação, sendo que por diversas vezes se emociona, pois se recorda da relação estabelecida com a genitora.

Quando seu filho estava com aproximadamente um mês de vida, Gabi manifestou o desejo de visitar sua genitora, para que a mesma pudesse conhecer o neto; tinha a esperança de encontra-la num momento de “oásis”.

Chegando na casa da genitora, Gabi foi maltratada e novamente amaldiçoada, decidindo então que a partir daquele momento a genitora estava morta em sua vida, dedicando-se integralmente para o filho e para o seu crescimento pessoal.

No período em que permaneceu no abrigo, voltou a estudar, realizou cursos profissionalizantes, participava das reuniões com as adolescentes, aprendeu a expor seus desejos e impor limites nas relações estabelecidas, recuperou sua auto-estima, aprendendo a valorizar-se.

Ao expor seus sentimentos e desejos era nítida a sensação de que Gabi tinha aprendido a lidar com o medo e ansiedade de ser rejeitada, bem como, havia encontrado seu lugar no mundo e principalmente o direito a existência.

Próximo a sua saída do abrigo, demonstrou-se confusa e triste, pois alegava que havia aprendido um novo modo de viver e que agora mudaria novamente, pois não teria o auxílio direto da equipe do abrigo, quando se sentisse menosprezada e solitária.

Podia se perceber em Gabi, o medo de não conseguir enfrentar dignamente a nova situação, bem como, era intenso o medo de ser rejeitada por outras pessoas.

Mas nas reuniões com o grupo, foram abordados assuntos relacionados ao medo do novo, possíveis dificuldades, formas de agir e principalmente sobre auto-estima e auto-valorização.

Atualmente, faz dois meses que Gabi foi embora do abrigo.

O contato com a equipe era mais intenso no inicio, pois em qualquer situação que lhe gerasse sentimento de menos valia e rejeição, procurava orientação sobre a forma que poderia lidar com isto, porém aos poucos foi percebendo que tinha condições emocionais para saber como agir.

Conclusão

“Nesta constelação de complexo é essencialmente importante que as pessoas não esperem que alguém lhes dê o direito à existência, mas que resolvam dá-lo a si mesmas, já que simplesmente existem”.[10]

No caso analisado acredito que Gabi conseguiu perceber e dar a si mesma o direito a existência, considerando que sobreviveu a tentativa de suicídio e o sentimento gerado a partir desta situação.

Também conseguiu recuperar, ou melhor, reconstruir sua auto-estima baseada em valores diferentes dos vividos no complexo materno originalmente negativo, pois teve a oportunidade de estabelecer relações amigáveis com outras mulheres, na qual se fez presente a “esperança de um elemento materno sustentador”. [11]

Acredito também que conseguiu construir sua identidade, simultaneamente com a maternidade.

Observações:

Escrevi este trabalho em 2004, quando realizei a Especialização em Abordagem Junguiana no COGEAE – PUC. Cnntudo, decidi publicá-lo no blog, pois acredito que o tema abordado é, independente da época, motivo de reflexão e aprendizado.

Bibliografia

Calluf, E. Sonhos, complexos e personalidade, Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1969.

Kast, V. Pais e filhas, mães e filhos, Loyola, São Paulo, 1997.

Stein, M. O mapa da alma, Cultrix, São Paulo, 1998.


[1] Stein, 1998.

[2] Calluf, 1969.

[3] Kast, 1997.

[4] Idem.

[5] Kast, 1997.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Nome fictício.

[9] Nome fictício.

[10] Kast, 1997.

[11] Idem.

2 thoughts to “Complexo Materno Originalmente Negativo”

  1. Olá tudo bem? Gostaria de saber sobre esse artigo… Aonde eu posso baixar o seu artigo em forma de PDF, pois procurei e não achei!!!

    Estou fazendo meu TCC sobre o Complexo Materno no feminino, mais infelizmente eu não acho artigos sobre o assunto e também gostaria de saber de você, se você sabe se existe algum livro do próprio Jung ou de seguidores sobre o assunto complexo materno.

    Fico no aguardo Ansiosa por sua resposta e desde já estou agradecida pela sua atenção.

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